Vésperas de Profissão Religiosa!
O sol poente, coando pelos vitrais do Capítulo, ilumina as feições dos noviços. Á luz do sol, afogueiam-se as fisionomias num arroubo juvenil; amanhã, pelos votos sagrados passarão a filhos ditosos de São Francisco. E, ajoelhados diante da comunidade, com o coração nos lábios, pedem admissão aos votos religiosos:
“Veneráveis Padre, e diletos Irmãos em Cristo, rogo-vos por amor de Deus, da Bem-aventurada Virgem Maria, do Nosso Seráfico Pai Francisco e todos os Santos, vos digneis admitir-me à profissão na Ordem Seráfica, para fazer penitência…”
FAZER PENITÊNCIA, eis a que neste magno dever vai objetivo de suas aspirações futuras. Fazer Penitência! Eis a definição do caráter da vida franciscana.
Em abono de tal convicção podem invocar o testemunho do Seráfico Pai São Francisco, o qual, recordando os desígnios de sua vida, perpetuou o seu Testamento a grata recordação: “Concedeu-me o Senhor a graça de uma vida penitente…”
Com efeito, a penitência e a abnegação são a nota dominante na Regra observada por São Francisco e os seus Filhos.
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Lapidares são as palavras que abrem a nossa Regra: “A norma de vida para os Frades Menores é a observância do santo Evangelho de Jesus Cristo”. E a Regra termina exortando: “Cumpramos à risca o santo Evangelho, conforme prometemos, de todo o coração.”
Depara-se algum contrasenso entre o corpo e a epígrafe da Regra? São Francisco, para quem o Espírito Santo esclarecida o sentido das Escrituras, descobriria na penitência do âmago das prescrições evangélicas?
O Pobrezinho de Assis tinha, sem dúvida, o dom de compenetrar-se das verdades divinas. Na interpretação das Escrituras não há meios de aproximá-lo daqueles que no Evangelho procuram a boa nova de uma redenção sem sacrifícios. São Francisco, reverente aos mistérios da Escritura, afasta-se dos que fazem do Evangelho um receituário vago de amor a Deus e ao próximo.
Não resta dúvida que o Evangelho é grata mensagem da Redenção. Tomado em conjunto, porém, pressupõe nossa cooperação, para nos remir da petulância dos sentidos, do pecado que assoberba nossa fragilidade. “Completo em meu corpo o que me falta à paixão de Cristo”, diz São Paulo Apóstolo, o mais ardente pregador do Evangelho.
Nossa cooperação participa do caráter da Redenção. Esta, porém, foi um portento de abnegação e sacrifício. Para assumir a forma de servo na Incarnação, o Filho de Deus obnubilou quanto possível a sua divindade. Mais tarde, teve de abandonar a forma de servo, quando sacrificou a sua humanidade pela salvação do mundo. Não estranha, pois, que a nossa cooperação seja de caráter penitente, na estrada real da Santa Cruz.
Toda a doutrina, todos os preceitos e conselhos do Evangelho culminam na exortação à penitência: “Quem não renunciar a si mesmo, não pode ser meu discípulo”. Este princípio é o fundamental da moral evangélica.
Francisco teve a ventura de penetrar o sentido do santo Evangelho, quando fez uma ordalia, para saber qual a norma de vida que devia seguir com os seus irmãos. Com simplicidade pediu ao sacerdote que abrisse, com sua mão ungida, o santo Evangelho, por três vezes atinou com o conselho de renunciar a tudo. Na terceira vez deu com os olhos na passagem: ” Quem quiser seguir-me renegue a si mesmo e abrace sua cruz”. O Santo compreendeu, então, ter achado a fonte da sabedoria evangélica. Desvaneceram-se as dúvidas. “Eia, pois, quem quiser abandonar tudo, venha à nossa companhia”.
Quando quis tarde, ultimar a redação da Regra, começou com as palavras: ” A vida dos Frades Menores é observar o santo Evangelho de Jesus Cristo”. E as diversas prescrições da Regra, formulou-as tão conformes à penitência, como não o fizera nenhum Fundador antes dele. No fim da Regra declara não exceder-se em suas exigências impondo a observância pura e formal do santo Evangelho. “Para observarmos o Evangelho, conforme prometemos, de todo o coração”. A interpretação ascética do Evangelho, muito apreciada na Igreja de Deus, colhe seu maior triunfo na Regra de São Francisco.
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Fonte: “Os Mananciais da Vida Franciscana”, Cap. 1 A Individualidade Franciscana, pelo Rev. Pe. Frei Galo Haselbeck, O. F. M. – 1933