Pausadamente, solenemente ecoa pelas arcadas do claustro do Convento de Sto. Antônio do Rio de Janeiro a recitação do Magnificat.
Todos os dias os Religiosos o entoam quando, depois da frugal ceia, se dirigem à igreja, parecendo silhuetas ambulantes no crepúsculo da noite.

…et exaltavit humiles, pronunciam agora, justamente ao darem os primeiros passos sobre as lousas de mármore vetusto que cobre os restos mortais dos que no Convento serviram na milícia do seráfico Patriarca.
…et exaltavit humiles. É o precônio perene das grandezas da Virgem Santíssima.
… et exaltavit humiles. É o hino de louvor que eleva a mente também a ti, santo Religioso, que tiveste o teu primeiro descanso sob esta laje silenciosa, que os teus Irmãos, depois de dois séculos, pisam no momento de o entoar.
Chama a atenção do transeunte uma pedra embutida na parede, à cabeceira da segunda sepultura, com as simples palavras:
Sepultura do Servo de Deus
Fr. Fabiano de Cristo ano 1747
É à memória deste servo de Deus que consagramos estas ligeiras notícias.
Chamava-se no mundo João Barbosa e nasceu aos 8 de fevereiro de 1676 no arraial de Soengas, arcebispado de Braga. Seus pais, de modesta condição, educam-no no santo temor de Deus e já moço fez-se pastor de rebanhos. Esteve algum tempo no Porto e dai embarcou para o Brasil, no intuito de melhorar se situação. Alguns anos entregou-se ao comércio do caminho das Minas, para depois se estabelecer com casa de negócio na vila de Paratí, ao sul de Angra dos Reis. Não comerciava com a usura e de seus lucros não era avarento para com Deus. Viveu no mundo cristãmente. Convencendo-se, porém, de como era difícil guardar-se puro nos perigos que o cercavam, tencionou voltar para Portugal e fazer-se Religioso. Aconteceu neste entrementes ser morto por um tiro seu sócio de negócio, e foi este o motivo por que resolveu não demorar mais a deixar o mundo.
Pela frequência dos nossos Religiosos na vila de Paratí, conheceu a Ordem Franciscana e um dia dirigiu-se ao Provincial Frei Boaventura de Jesus, pedindo-lhe por amor de Deus ser admitido. Obteve esta graça, depois de se preparar com três dias de retiro, no dia 11 de novembro de 1704, no Convento de S. Bernardino de Angra dos Reis, tendo ele 28 anos e nove meses de idade. Antes de recolher-se ao Convento, dispôs de seus haveres, satisfazendo algumas obrigações em Portugal e distribuindo o resto aos pobres e obras pias.
No noviciado assimilou tão bem a vida de Religioso Franciscano que, no dizer do cronista, se tornou veterano na prática das virtudes. Nada obstava por isso à sua profissão, que fez aos 12 de novembro do ano seguinte de 1705. Na mesma ocasião tomou o nome de Frei Fabiano de Cristo.
O recém-professo não permaneceu muito tempo em Angra dos Reis; escolheram-no os Superiores para porteiro do Convento de Sto. Antônio do Rio de Janeiro, com o que lhe deram provas de grande confiança, pois era ofício que geralmente competia a sacerdotes. Com a mesma ocupação e mais a de sacristão esteve no Convento de Cabo-Frio, mas por breve espaço de tempo.
Em 1709 foi chamado novamente para o Rio, sendo-lhe entregue o cuidado pelos doentes na grande enfermaria dos Convento, aonde se recolhiam também os Religiosos enfermos das Casas vizinhas. Foi este o lugar onde Deus quis que mais e mais se acrisolasse a sua virtude, até conduzi-la ao ápice da perfeição durante os 38 anos que serviu nesta ocupação.
Profunda, verdadeira era a sua humildade. Queria ser único a tratar as enfermidades dos Religiosos e escravos, sentia-se bem aos prestar-lhes os mais humildes serviços. Recebendo elogios, mostrava tristeza, mas quando algum doente na impaciência lhe dizia qualquer palavra dura, disfarçava como se nada tivesse ouvido e retirava-se com semblante alegre como sempre. No Capítulo das culpas era um dos primeiros a acusar suas pretensas faltas e espontaneamente descobria o pescoço para receber o castigo de açoites.
Como o servo de Deus era humilde, primava também por sua caridade e paciência. Nos anos em que era porteiro, ofício que tantas ocasiões oferece para perder a paciência, tratava os mendigos com toda a afabilidade, repartia-lhes o que tinha, ou pedia aos de fora que os socorressem e sempre os deixava consolados. Como enfermeiro, era inexcedível em suavizar sofrimentos, satisfazer os caprichos dos doentes, tivesse embora de velar toda a noite, cuidar da recepção tempestiva dos Sacramentos e consolar e confortar os moribundos.
O cronista nos deixou o seguinte o exemplo de sua invicta paciência. Certa vez, um doente, num ímpeto de forte impaciência, lhe atirou ao rosto o vasilhame, com que ficou ferido. Não se alterou, mas disse que ia buscar outro. No dia seguinte o Superior reparou nos ferimentos recebidos e pediu explicação. Frei Fabiano, então, prostrou-se a seus pés e suplicou que nada se dissesse ao ofensor.
O zelo que o santo Irmão tinha para com os doentes era conhecido também na cidade. Por este motivo gostavam de lhe remeter muitas coisas de que se tem precisão numa enfermaria bem instalada. E não só isto. Frequentemente pediam ao Guardião que o deixasse visitar os seus doentes em casa. Outras vezes levavam-nos à portaria. Conta-se que muitas vezes dava melhoras com o ungir os doentes com o óleo da lâmpada que mantinha acesa diante da bela imagem de N. Senhor dos Passos ou dar-lhes a beber da água benta que guardava num moringue. Tanto a Imagem, como a moringa, o Convento de Sto. Antônio conserva até hoje, belas recordações de um virtuoso confrade.
Em tão alto grau praticava Frei Fabiano a piedade, que só dormia duas horas. Assistia às matinas à meia noite e depois não repousava mais. Silencioso passava, então, pela enfermaria a ver se alguém precisa de seus cuidados, rezava no coro e desde a madrugada ajudava a quantas Missas pudesse.
Verdadeiro filho do seráfico Padre, o servo de Deus era pobre e penitente. Nunca na sua vida religiosa teve cela; dormia na Igreja, no coro ou num cantinho da enfermaria sobre uma esteira ou couro e para travesseiro tinha um pau. Vendo, porém, o Guardião o muito que sofria pelas chagas que trazia abertas nas pernas, mandou que se recolhesse a uma alcova. Os seus únicos trastes eram nessa os cilícios, disciplinas, rosário e agulha com linha para costurar os trapos de que necessitava para amarrar suas pernas chagadas.
Frei Apolinário da Conceição conta uma prática do virtuoso Irmão que bem nos mostra a sua encantadora simplicidade. O seu nome de batismo era João. Ora, quando vinha o dia da festa de S. João Batista, colocava sobre a cabeça uma grinalda de flores e ervas odoríferas e pedia a algum sacerdote que rezasse sobre ele o Evangelho de S. João. Assim ornado ajudava as missas e andava pelo Convento. Uns riam-se, outros censuravam, mas ele não se perturbava; acontecia também roubarem-lhe a grinalda e os seculares julgavam-se felizes em conseguirem-na para si.
Percebendo o fim de sua vida terrestre, Frei Fabiano se preparou com a recepção dos SS. Sacramentos e, abraçando com o crucifixo, faleceu no dia 17 de outubro de 1747, de uma para duas horas da tarde, tendo de idade 71 anos e 43 de Religioso franciscano.
A sua morte comoveu toda a cidade. Todos lhe queriam dar o último adeus, venerar os seus despojos mortais e levar para casa alguma relíquia. Compareceu o Bispo, o General Gomes Freire de Andrade, a nobreza e o povo sem conta . Houve uma verdadeira invasão do Convento e tornou-se preciso recorrer à polícia para restabelecer a ordem. Três vezes foi preciso vestir o corpo.
Tanta era a fama de santidade de Frei Fabiano e tão profunda a convicção nos seus Irmãos de hábito de que Deus o tinha na glória, que os Superiores trataram, logo depois da morte , de coligir os documentos para uma eventual beatificação. Os mais importantes depoimentos são do Bispo e do General sobre o que pessoalmente presenciaram de extraordinário no dia imediato ao do seu falecimento.
Trinta anos depois da morte, os despojos veneráveis foram exumados e depositados numa caixa e encerrados numa parede perto da enfermaria, onde estiveram até 1927. Hoje estão numa urna de mármore em baixo do altar de uma capela no claustro, mas acessível pela Igreja.
À beatificação não chegou até hoje, mas depois de, em 1924, se acharem os seus ossos, reviveu a confiança do povo na intercessão do Servo de Deus. Aí estão os ex-votos que cobrem as paredes da capela, para atestar quantos rendem graças por benefícios recebidos. Rara é a hora do dia que não haja devotos diante dos despojos veneráveis, e o nome do humilde enfermeiro do Convento de Sto. Antônio do Rio de Janeiro é conhecido em todo o Brasil.
– Frei Basílio Rower, O. F. M. / Frei Fabiano de Cristo – Livro: A Ordem Franciscana no Brasil. Vozes 1941